segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Foi um tiro, poeta!


Por *Helenita Monte de Hollanda
O encontro entre o cineasta Billy Wilder e o poeta Vinícius de Moraes
Hollywood, 18 de abril de 1948. Em carta a sua mãe, D. Lydia, o poeta Vinícius de Moraes escreve pedindo-lhe com urgência que apure detalhes sobre um fato ocorrido em sua infância e sobre o qual ele lembrava de comentários em casa de Vovó Neném.
Pedia o Vininha, no maior sigilo possível, que alguém da família pesquisasse nos arquivos da Biblioteca Nacional as notícias veiculadas na imprensa sobre um operário que caíra num esgoto no Rio de Janeiro e que morrera alguns dias depois, sem que ninguém o pudesse tirar de lá. “Dá um enredo formidável para um filme e tenho aqui alguém interessado na ideia, que me poderá dar bom dinheiro, que muitíssimo estou precisando”.
Vinícius estava em fase efervescente. Inspirado, escrevia “como um desalmado”. Foi a época, entre outros, de Pátria Minha, sensacional poema que exalta com críticas magoadas um Brasil cujos problemas acompanha de longe e que já não lhe alimenta ilusões políticas, mas que ama como só um exilado é capaz (“teu nome é Pátria Amada, é Patriazinha, não rima com mãe gentil.”). E assim, saudoso e inspirado, porém sempre em dificuldades financeiras, fazendo “bicos” que, como ele várias vezes admite, “o Itamaraty pode não gostar”, o poeta insiste em sua poesia. Não nascera para “lamber selos” e a sua alma livre pouco ou mal se acomodava ao cargo de diplomata. Assim é que ter alguém interessado em uma sua história, em um possível roteiro para o cinema enquanto escrevia a peça Orfeu, que parecia não ter fim nem muito menos data para ser encenada, era um presente dos céus. Animado, ele pauta, com detalhes, todas as informações que ele precisa para escrever o seu filme. “É a história do século, porque é simbólica dos tempos que correm, e cheia de tragédia e suspensão.”
A história não registrou se os dados foram coletados pela família e enviado a ele nos Estados Unidos. Pelo menos nada encontramos em sua correspondência tão bem organizada por Ruy Castro em Querido Poeta. O que sabemos do episódio ocorrido no Rio é o que o próprio Vinícius conta: um operário caíra no esgoto, houve mobilização popular, brigas entre os Corpos de Bombeiros de Rio e São Paulo, grande repercussão na imprensa e um homem morto ao final de muito burburinho em jornais e telejornais. Não fizemos nenhuma pesquisa sobre o caso. Dele tivemos notícias no filme lançado três anos depois da referida carta – A Montanha dos Sete Abutres, de Billy Wilder, em 1951, temperado com pitadas do imaginário religioso do Novo Mexico, onde a trama se desenrola. Todas as perguntas pautadas por Vinícius para que a família pesquisasse no Rio de Janeiro estão lá, respondidas. Genialmente o diretor escandaliza o expectador com uma crítica ferrenha a um jornalismo existente, manipulável, sensacionalista, descomprometido com a verdade e assassino. Não é à toa que o protagonista Chuck Tatum (Kirk Douglas) anuncia a manchete de sua última matéria: “Repórter deixa homem enterrado por seis dias.”
Sobre as relações entre Vinícius e Billy Wilder, também nada sabemos. O nome do Poetinha Camarada não aparece nos créditos do filme, de modo a imaginarmos que o roteiro foi vendido juntamente com o direito autoral uma vez que três outros mestres o assinam – o próprio Wilder, Lesser Samuels e Walter Newman. Mas pouco ou nada interessava ao diplomata atolado em dívidas cujo sonho revela em carta do mesmo ano ao amigo Manuel Bandeira era apenas - “Quero positivamente viver sem dívidas”.
Se é triste vender uma obra, não o é menos ter dívidas vencidas. Vinícius estrebuchava para viver. Mas que fique entre nós o registro para a justiça e satisfação do “branco mais preto do Brasil”, do poeta e diplomata Vinícius de Moraes: que ele intuiu profeticamente, informou-se com perspicácia e escreveu com elegância o roteiro do filme (ou da história) vendido. Mais uma vez ele estava certo e não era à toa que pedia em foma de apelo: “Minha mãezinha, preciso disso como de ouro. (…) Estou ardendo para começar a pegar a coisa porque, ou muito me engano, ou vai ser um tiro.”
Foi um tiro, Poeta!
*Médica e escritora

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